segunda-feira, 22 de março de 2010

MATA GRANDE – O MENINO, A BURRA E O CEMITÉRIO

Quando nos meus onze anos morando em Mata Grande, em 1957, na Rua da Cruz, meu velho pai arranjou-me uma empreitada, uma das mais difíceis para um menino da minha idade na época. O velho, na sua labuta fazia viagens ao interior de Mata Grande, visitando povoados, sítios e fazendas detectando e combatendo focos do mosquito vetor da Febre Amarela. Tudo isso em companhia de alguns guardas tais como: João Félix, Mesquitinha, Zé Firmino, Mané Gomes e Leonel, todos montado. Papai comandando a turma seguia pela estrada pilotando uma burra que havia recebido do DENERU – Departamento Nacional de Endemias Rurais, e carregando nas costas algumas embalagens dos famosos DDT, BHC, Senogás e o famoso 1080 (milhioitenta).
Geralmente papai iniciava suas viagens nas segundas-feiras. Partia logo cedo, antes do nascer do sol ao som do canto matinal do galo carijó nos quintais dos vizinhos que davam acesso ao povoado Galo Assanhado. Do meu quarto ouvia as passadas do animal descendo o fragmento de ladeira que se estendia do portão dos fundos da nossa casa, um velho sobrado, ao encontro com a Rua da Cruz, enquanto o meu pai temperava a garganta como um sinal de que já estava partindo. Às vezes eu corria até a varanda onde via-o ao longe juntar-se aos colegas de trabalho, para em seguida num trote coletivo subirem a ladeira do Bom sucesso até se encobrirem na curva da estrada. Enquanto isso, minha doce mãe já se ocupava das suas primeiras tarefas do dia, preparar o café para os três filhos mais velhos, Renilce, eu (Remi) e Remilton (Mitinho) que estudavam no Grupo Escolar Demócrito Gracindo.
A semana passava rápido, geralmente papai retornava do campo na sexta-feira, trazendo na roupa aquele cheiro característico dos organoclorados. Coitado do meu pai, sabia do perigo que aqueles produtos químicos representavam para a saúde, mas não tinha como evitar, o trabalho era a sua lida. Eu e meu irmão éramos encarregados de levar o animal no cercado, tarefa esta que nos servia como um castigo pesado, pois o cercado era vizinho ao cemitério, parede e meia. Eu por ser o mais velho, arcava com a responsabilidade. Todas às sextas-feiras depois das três horas da tarde, me sentava no primeiro degrau da escada de acesso ao velho sobrado, ansioso e sempre com o olhar rotativo para a ladeira do Bom sucesso e da Rua de Cima. Pedia a Deus para que meu pai chegasse mais cedo, pois tinha uma missão difícil, deixar a burra no cercado. Algumas vezes o velho retornava com o sol já se escondendo por entre as serras que desenhavam Mata Grande, num momento crepuscular; as cigarras decoravam o cenário com seus cantos às vezes tristes, anunciando o despertar do entardecer.
E mais uma vez lá vou eu atrelado ao lombo do animal num destino forçado. Seguia pela Rua de Baixo, passava em frente a prefeitura, a residência de Seu Rodrigues, pai de Iremar e mais adiante entrava pela Rua Nova na esquina da padaria de Seu Panta. O cheiro do pão estava no ar, mas nem mesmo aquele convite me fazia perder o medo de chegar ao cercado. Lá adiante, próximo a casa do guarda João Félix, pelo lado esquerdo da rua, fiz a manobra do animal seguindo por uma estrada de barro ladeada por cercas de aveloz numa espécie de corredor. Nesse trecho o caminho era cada vez mais tenebroso, a lua em fase minguante ocultava-se entre as cortinas esparsas das árvores. Ao longe avistava o cercado num desvio do caminho por uma trilha pequena revestida por grama de burro. Nessas alturas já puxando o animal pelo seus quase dois metros de cabresto feito de caroá, olhar direcionado para o muro do cemitério, trêmulo, apenas conseguia extrair da minha imaginação personagens mitológicos de outros mundos, almas penadas e assombrações. O olhos das corujas aninhadas sobre o muro refletiam as luzes emitidas pelo ofuscado luar, dando a impressão mais real do sinistro. Abro a cancela, escuto no seu movimento aquele chiado funesto e triste. De repente sinto algo descer por entre as pernas do calção de caque, sob a forma de um liquido quente num caminho desviado pelo medo, o mijo. Nesse momento, numa rapidez do gás butano retiro o cabresto da burra que aliviada e bufando repete vários saltos rumo ao interior do cercado. Enquanto isso, na velocidade do pensamento fecho a cancela e corro de estrada a fora me enrolando no cabresto, indo de encontro a uma fonte de água nas margens do caminho. Cheguei em casa minutos depois, molhado e com o rosto enlameado parecendo um mateu...

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